Outro dia li em um jornal de grande circulação reportagem que iniciava assim: “O Iraque é aqui. Nenhuma guerra consegue matar 35 mil pessoas por ano”. A novidade do texto é que mudamos de guerra. Antes, comparávamos o caos cotidiano do trânsito brasileiro com a Guerra do Vietnã.

Na verdade, o texto do jornalista chama a atenção para a maior tragédia sobre rodas que se tem conhecimento. É um escândalo em qualquer sociedade civilizada. A tragédia fica pior quando sabemos que não são 35 mil pessoas que perdem suas vidas. O número é muito maior. Alguns especialistas estimam em 50 mil. Mas, não importa. Fosse somente um já seria inaceitável -35 mil ou 50 mil é uma barbárie.

Segue o texto, dando-nos conta de que foi deflagrada uma discussão na Câmara dos Deputados sobre a revisão do CTB (Código de Trânsito Brasileiro), que se propõe a agravar a lei para punir mais severamente os motoristas que cometerem infrações graves e matarem pessoas. Cita como exemplo tirar “rachas” em via pública. Vamos completar com outras ações que tiram a vida no trânsito, entre elas as mais evidentes: as bebidas alcoólicas, as drogas, a velocidade, a falta de manutenção do veículo e o estado de conservação da estrada.

A audiência pública realizada pela Comissão de Viação e Transportes, com a participação dos ilustres deputados que a compõem, advogados, promotores, juízes, além do diretor do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), logo de cara já emperrou em questões de ordem legal: o crime foi culposo (aquele que mata sem intenção) ou doloso (aquele que mata com intenção, ou seja, sabia do risco de matar)? Pode-se tratar destes crimes à luz do Código Penal? É constitucional introduzir estas mudanças no CTB?

Pronto, caímos em uma discussão que nos reporta para este complexo e ineficiente sistema jurídico que atormenta a sociedade brasileira e que não leva ninguém para cumprir pena de reclusão por matar no trânsito.

Aqui, não se trata de comentar o caráter democrático e legal da discussão. Não é preciso dizer que sempre deveremos ter em vista o amplo direito de defesa de qualquer cidadão. Trata-se, sim, de uma constatação. No Brasil, todas as leis que punem deixam tamanhas brechas que raramente alguém vai preso por ter causado alguma morte em acidente de trânsito. Você conhece alguém?

Certamente esta é uma discussão interessante para os ilustres deputados, advogados e juristas que participam do debate para a mudança do CTB. A sociedade espera que dela saia uma lei justa que realmente puna o culpado.

O receio é que estas discussões acabem tratando dos problemas secundários da questão e percamos a oportunidade de sermos ousados e dar um passo à frente. O que impressiona no Brasil é a falta de objetividade na condução das coisas. Isso vale para tudo. As discussões sobre temas de alto interesse nacional acabam caindo no limbo político do Congresso Nacional, e a solução ou fica pela metade ou não fica resolvida. O último foi o limbo da crise área. Perdemos uma grande oportunidade de resolver um problema eminentemente técnico com discussões estéreis altamente politizadas.

Na verdade, o que interessa ao país são soluções objetivas para resolver os inúmeros problemas que temos, entre eles, a morte no trânsito. Para sermos objetivos, temos que estruturar o raciocínio. Qual é o problema? Morte no trânsito. O que causa morte no trânsito? Como eliminar o problema? Pronto, já começamos a raciocinar objetivamente.

Ao enumerar as causas e os efeitos começa-se uma gestão decidida para eliminar as causas. Se o país fosse uma empresa privada, este seria o encaminhamento. Aí, poderão dizer: mas o país não é uma empresa e estamos numa democracia em que o fórum para esta discussão é o Congresso Nacional. Que seja, mas com objetividade. As soluções para o problema são técnicas e os congressistas, advogados, juristas etc. deveriam dar a necessária sustentação legal para as soluções técnicas.

Por que não começamos a  fazer algo prático, estabelecendo metas nacionais? Todo mundo tem que saber que hoje morrem pelo menos 35 mil brasileiros no trânsito por ano. Então, no primeiro ano, vamos reduzir para 30 mil; no segundo ano, para 20 mil. E, assim, até alcançarmos um número aceitável.

Podemos colocar um grande placar eletrônico em Brasília e em outras cidades com frota circulante significativa informando para todo o país a meta e o resultado alcançado mês a mês. Todos têm que estar envolvidos, este é um assunto que diz respeito a toda sociedade.

A discussão para as mudanças no CTB tem ainda outros contornos e poderíamos explorá-los com grande ousadia.

Então, onde estão alguns dos principais agentes deste problema? Porque não estão sendo chamadas para a discussão a indústria automobilística e indústria de bebidas? E as autoridades responsáveis pela fiscalização e vigilância das ruas e estradas?

Até hoje, alguns dos  artigos do CTB não “pegaram”. Um deles é cinto de segurança no banco traseiro. Esta medida por si só já representaria um ganho fantástico na “conta saúde”. Todos sabem que a não utilização do cinto traseiro agrava as lesões causadas em acidentes. Esta medida já está prevista no CTB, não precisa mudar nada, talvez redigir melhor, depende da vontade política de aplicar a lei.

E a inspeção veicular?  Quando vamos obrigar a inspeção veicular? Não adianta nada colocar “chip” na frota sem tratar primeiro da parte mecânica. A segurança do passageiro é que deveria ser a prioridade do governo.

Não adianta a indústria automobilística entregar aquele manualzinho de direção defensiva para o comprador que recebe um carro novo. É evidente que isto não resolve nada, até porque na nossa sociedade não se criou o hábito da leitura e, muito menos, de leitura de manual. Maior rigor na fiscalização das auto-escolas é que ajuda.

Poderíamos aproveitar esta discussão em curso na Câmara para sermos mais ousados. Vamos discutir a obrigatoriedade da instalação de itens de segurança nos carros novos, como os “air bags”, barras de proteção, sistemas de freios ABS, entre outros. O governo poderia rever a carga de impostos incidentes sobre os veículos e, literalmente, trocar com a indústria o imposto pelo item de segurança aplicado.

Alguns dirão que o  sistema tributário brasileiro não permite. Chamem os tributaristas, mudem-se as leis. Esta aparente “perda” de receita seria facilmente compensada na “conta trânsito”, com significativa economia na “conta saúde”.

Outro tema para ser colocado na pauta: por que não chamamos a indústria de bebidas para essa discussão? Está mais do que evidente que não adianta colocar o grande sambista Zeca Pagodinho fazendo publicidade de cerveja e, no final, alguém dizer baixinho ou escrever pequenininho “se beber não  dirija”. Na realidade, o que acaba prevalecendo é o samba do ilustre cantor e, após a cervejada, os acidentes dela decorrente.

A este respeito acompanhei um programa muito objetivo patrocinado por um grande fabricante de cerveja em uma cidade nos Estados Unidos. Era simples: se um cidadão fosse a algum local onde era permitido beber e excedesse os limites, poderia deixar seu carro no estacionamento e acionar um táxi por meio do serviço de atendimento ao consumidor da cervejaria, que eles imediatamente mandariam um táxi ir buscá-lo e entregá-lo em sua casa, são e salvo.

Não é que os fabricantes  sejam “bonzinhos”. Como sabe-se, uma ação judicial nos Estados Unidos contra a cervejaria, que é o fabricante, e contra o dono do botequim, que vendeu a bebida, pode resultar num prejuízo milhares de vezes maior que o táxi oferecido ao cliente.

Mais ainda, vamos fazer  uma mobilização para eliminar da pauta do Congresso os Projetos de Lei que flexibilizam a legislação de trânsito em prol do infrator. Estes entulhos travestidos de Projetos de Lei atrapalham a tramitação dos trabalhos sérios. Por desconhecimento ou demagogia com seus eleitores, vários projetos estão minimizando a fiscalização, limites de velocidade e as multas.

Uma sociedade que deixa morrer e lesionar esta quantidade de gente jamais poderá ser chamada de  civilizada. A história é implacável. Daqui a alguns séculos, quando contarem a história da civilização, dirão que havia uma sociedade que habitava o continente Sul Americano e que o seu esporte preferido era matar gente no trânsito. É mais ou menos igual quando hoje contamos a história romana e os seus jogos no Coliseu.

Tem alguma coisa  muitíssimo errada na nossa organização educacional, ética e moral.