Por Frederico Pierotti Arantes, presidente do Cetran/SP (Conselho Estadual de Trânsito/SP) e presidente do Focotran (Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Trânsito)

Sem sombra de dúvidas uma das maiores conquistas da sociedade é a comunicação, saber comunicar com clareza, significa sintonia fina, mais ainda, é a prova de que a mensagem endereçada está sendo absorvida corretamente para o seu destinatário, no nosso caso, toda a sociedade. Com certeza é uma difícil tarefa, no trânsito não é diferente.

Mais do que isto, apesar de possuir um capítulo exclusivo para tratar sobre o tema da educação para o trânsito, que envolve obrigatoriamente a comunicação, a atividade não é completamente desenvolvida, e em grande parte pelo fato de que os destinatários não estão dispostos a fazer pelo próximo o que deseja que seja feito para si e para os seus. A maior prova disto é que uma pequena parcela da sociedade ainda insiste em descumprir as normas de trânsito, terceirizando a responsabilidade, seja por ignorância a Lei ou simplesmente porque acreditam piamente que no trânsito, basta acelerar.

Mas não é só, o verdadeiro descompasso entre o “eu” e o “nós” certamente contribui em muito para os altos números de óbitos decorrentes de sinistros de trânsito, sem mencionar que a desigualdade social, a desinformação, também são fatores decisivos para o altíssimo índice de mortalidade no trânsito.

Segundo os dados no Relatório de 2021/2022 de Desenvolvimento Humano da ONU, o cenário mundial parece estar longe do fim, visto que o Índice de Desenvolvimento Humano em todo o planeta caiu pelo segundo ano seguido, acendendo um sinal de alerta, já que é a 1ª vez que isto ocorre em três décadas, a saber, o IDH é uma medida que leva em consideração aspectos econômico e social de uma população.

Destarte, se por um lado há sim um completo desinteresse, na medida em que parte da sociedade segue ignorando valores sociais e à medida que os órgãos executivos de trânsito não conseguem atingi-los de forma eficiente, com linguagem simples, clara e objetiva, há uma evidente e decisiva perda de oportunidade de nos tornarmos melhor como sociedade, contribuindo de forma colossal para que falsos mantras sejam ditos, e é assim com a indústria da multa, infelizmente.

Esta postura se deve em parte, na dificuldade de se dizer o óbvio. Vejamos, alguém duvida que andar pelo parapeito de um edifício com 100 andares, sem qualquer proteção é uma conduta arriscada? Creio que não! Noutra ponta, porque o risco de dirigir a 100 quilômetros por hora em uma avenida não produz o mesmo efeito?

O autor Roberto Da Matta descreve o dito fenômeno como a dificuldade do brasileiro em cumprir regras e o fato de que o automóvel é o objeto de ascensão social, mas acredito que em boa parte é preciso que o Poder Público e nossa sociedade, esclareça a este pequeno grupo, ou ao menos, a parte deste, de que os órgãos de trânsito e os agentes de fiscalização, trabalham para a sua proteção em primeiro lugar, e não para a punição.

A tarefa não é simples, mas é imprescindível, especialmente porque o Estado tem o dever de proteger a vida, a integridade física, o patrimônio público, a propriedade privada, entre outros, e a sociedade organizada, clubes de serviço, imprensa, tem a responsabilidade social de verbalizar o que é correto. A vida em sociedade tem regras, é preciso reafirmar isto.

Pois bem, para alguns, a fiscalização de trânsito, comumente chamada de “radares” instalados nas vias, está intimamente ligada à postura do Estado opressor, do que só almeja arrecadar e punir o cidadão. Para estes, é preciso revelar os dados que estes equipamentos produzem. É vital para nossa sociedade que os órgãos de trânsito divulguem as estatísticas produzidas por tais equipamentos, é vital informar sobre a quantidade de sinistros, de óbitos, de lesionados, de leitos hospitalares ocupados por vítimas desta verdadeira guerra no trânsito de nossas cidades.

Para tal, nunca é demais informar que bebida e direção não são e nunca foi uma mistura segura; que o excesso de velocidade mata; que o cinto de segurança e a cadeirinha salvam vidas! É preciso demonstrar de maneira objetiva os riscos e os benefícios de cada uma destas condutas. É preciso, por exemplo, informar que a organização nas vias está atrelada a organização da vida em sociedade e não da arrecadação financeira.

Além disto, é fundamental que toda a sociedade tenha consciência e noção de pertencimento das nossas vias, é fundamental informar que as vias públicas pertencem a todos nós e não a de que as vias públicas são um espaço comum, que pode ser desrespeitada, suja. Ao atribuir como nosso, estaremos atribuindo a todos nós a tarefa de preservação destes ambientes, pois, se continuarem sendo vistas como um espaço comum, infelizmente não teremos o mesmo sucesso. A voz do povo é a voz de Deus, e no caso em apreço, “cachorro que tem dois donos acaba morrendo de fome”, referindo-me ao fato de que aos tutores do cãozinho, imaginam que o outro irá alimentá-lo.

A máxima também vale para o trânsito, se não cuidarmos das vias públicas e se não respeitarmos uns aos outros, não teremos paz no trânsito. Vejamos, a negativa de se enxergar o que está posto a sua frente, no que diz respeito ao trânsito, pode ser desmistificada com um simples exercício. Para se constatar o óbvio ululante, basta que você se dirija até a calçada de um cruzamento qualquer e permaneça durante um período de 10 minutos observando a quantidade absurda de motoristas que falam ou manuseiam o celular; dos que conduzem em velocidade excessiva; daqueles que desrespeitam os semáforos ou daqueles que não utilizam cinto de segurança; isto para ficarmos em apenas quatro condutas reprováveis e que estão disciplinadas no CTB.

Ao ignorá-las quem abusa é o condutor e o risco é de toda a sociedade.

Sobre os dados de autuações, a corroborar o explanado acima, somente no mês de agosto de 2022, foram registradas no RENAINF, 4.528.513 autuações em todo o País, conforme dados obtidos junto a Secretaria Nacional de Trânsito – SENATRAN.

Por sua vez, a frota brasileira, registrada no sistema RENAVAN é de 113.753.718 e o número de condutores habilitados, registrados no sistema RENACH é de 78.885.108, o que nos leva a crer que a criminalização das autuações fica muito mais por conta do apelo midiático do que efetivamente da má intenção das autoridades de trânsito do País. Por certo, com esta quantidade absurda de infrações, podem existir erros no preenchimento do auto de infração, no processamento da multa propriamente dito e nos julgamentos, sendo que, para todas as possibilidades elencadas, existem ferramentas legais para reparar o erro eventualmente cometido.

Isto porque, a cada etapa da notificação da autuação, a autoridade de trânsito do competente órgão deve oportunizar meios para que o proprietário, seu responsável legal ou o indicado pela condução do veículo possam exercer seu direito de defesa, seja apresentando defesa prévia, recursos à JARI e ao Conselho Estadual de Trânsito – Cetran e ao Conselho de Trânsito do Distrito Federal – Contrandife.

E antes que possa ser aventada a parcialidade dos julgamentos, o fato é que as suas diretrizes são emanadas do Conselho Nacional de Trânsito – Contran, a saber, a Resolução Contran nº 357 de 02 de agosto de 2010, estabelece diretrizes para a elaboração do Regimento Interno das Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARI, enquanto que a Resolução Contran nº 901 de 09 de março de 2022, consolida as normas sobre as diretrizes para a elaboração do Regimento Interno, gestão e operacionalização das atividades dos Cetrans e do Contrandife.

Além disto, nos estados, as atividades são reguladas por Decretos, no estado de São Paulo, pelo Decreto Estadual nº 64.085, de 23 de janeiro de 2019 e a sua alteração disposta no Decreto Estadual nº 65.264, de 20 de outubro de 2020,

Sujeitam-se ainda ao regimento interno do Colegiado, no caso do estado de São Paulo, o mesmo está disponível no sítio eletrônico do Cetran-SP, salientando que, desde março de 2020, em decorrência da pandemia do Covid 19, todas as sessões deliberativas e de julgamento são realizadas na modalidade remota, com transmissão ao vivo para o canal do Cetran SP no Youtube, à partir das 09:00 horas, garantindo mais lisura e transparência aos julgamentos, sem mencionar a economia de recursos públicos.

Neste sentido, atribuir a responsabilidade pelo indeferimento dos recursos administrativos à Administração Pública, sob a justificativa de arrecadação dos recursos advindos de multas de trânsito, é, no mínimo, precipitada e vulgar, especialmente porque os colegiados são formados por diversos órgãos e entidades, inclusive das Polícias Militares, da Polícia Rodoviária Federal, dos Estados, Municípios, da Sociedade. No estado de São Paulo é publicado edital para composição do Cetran SP, e o prazo para inscrições está aberto, e maiores informações estão disponíveis em nosso site www.cetran.sp.gov.br.

Mas não é só, segundo dados obtidos junto ao sítio eletrônico de uma das empresas privadas mais atuantes neste segmento em todo o País, presente em 26 unidades federativas do Brasil e em mais de 450 municípios, obtivemos um dado absurdamente relevante e que representa a pá de cal sobre a intitulada “indústria da multa”.

A empresa registrou “mais de 6 bilhões de veículos por ano, com o índice de respeito à presença dos nossos equipamentos de 99,93%”, o que equivale a 42 infrações registradas a cada 10.000 veículos, ou seja, a absoluta maioria dos condutores respeitam as regras de trânsito.

Segundo apontado pela publicação, a instalação de equipamentos contribuiu para a redução de sinistros e óbitos no trânsito, estimando que “cada equipamento instalado salva 3 vidas e evita 34 acidentes por ano, e que os resultados da fiscalização eletrônica chegam a redução de 60% no número de fatalidades e de 30% no número de acidentes”, temos um baita motivo para acreditar na eficácia da fiscalização eletrônica.

Outro ponto importante dado a ser desmistificado, diz respeito ao recurso financeiro advindo do pagamento da multa de trânsito, esta é uma verba “carimbada”, ou seja, não pode ser alocado em qualquer das rubricas de pagamento da União, dos Estados e dos Municípios. São regidas pelo artigo 320 e 320-A do CTB e pela Resolução Contran nº 918, de 28 de março de 2022, que consolida as normas sobre procedimentos para a aplicação das multas por infrações, a arrecadação e o repasse dos valores arrecadados, nos termos do CTB.

Mesmo assim, se ainda continuarem com dúvidas sobre os “radares”, é imprescindível informar que os equipamentos controladores de velocidade são regulados pela Resolução Contran nº 798, de 02 de setembro de 2020, que dispõe sobre requisitos técnicos mínimos para a fiscalização da velocidade de veículos automotores, elétricos, reboques e semirreboques. Além disto, prescinde de estudo técnico que o justifique, que deverá levar em consideração todas as características da via, sua geometria, velocidade, estatísticas sobre o número de acidentes ocorridos no local, acompanhado de projeto e croqui assinado por responsável técnico, devidamente registrado no CREA.

Tais equipamentos, controladores de velocidade, são regulamentados pelo INMETRO – Instituto Nacional de Metrologia, garantindo absoluta lisura e segurança aos usuários das vias.

E mesmo assim, diante de todos os fatos, evidências e estatísticas apontadas, se ainda assim, persistir a máxima da “indústria da multa”, restará evidenciado que não estamos conseguindo exercer a mais básica e mais essencial de todas as atividades da vida em sociedade, a comunicação. Ao não conseguir demonstrar ao cidadão tais fatos, resta notório que não estamos nos comunicando bem, acarretando sérias consequências ao trânsito.

Tal situação me fez recordar dois pensamentos, o primeiro, do saudoso Abelardo Barbosa, o eterno Chacrinha, ícone da televisão brasileira na década de 80, que já advertia: “quem não se comunica se estrumbica”, e o segundo, exposto pelo ditador o Júlio César, nos idos de 63 A.C., “A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.

As máximas são válidas e muito pontuais, além de extremamente pertinente aos órgãos de trânsito, já que não basta comunicar, é preciso fazê-lo com clareza e de forma mais assertiva; é preciso avançar em campanhas mais incisivas e destiná-las aos segmentos mais críticos no trânsito de nosso País.

É preciso ser claro o bastante para que o condutor possa fazer uma reflexão imediata sobre a sua conduta, a ponto de avaliar o que o seu comportamento individual representa para si e para toda a sociedade um efetivo risco de vida. Por exemplo, é importante demonstrar que avançar o semáforo no vermelho pode produzir um resultado nefasto. Numa situação hipotética, se levarmos em consideração que o condutor de um veículo desrespeitar o semáforo e vir a colidir com uma família no outro carro, que trafegava em respeito a sinalização, o resultado irá muito além dos 7 pontos na habilitação do condutor infrator e no valor da multa, que é de R$ 293,47, conforme dispõe o artigo 208 do CTB.

Os números de óbitos e sinistros no País são assustadores, segundo dados do RENAEST, nos últimos 05 anos, foram registrados 101.983 óbitos, 5.866.565 feridos, em 3.779.214 acidentes ocorridos com 5.008.836 veículos, sem levar em consideração os dados da Polícia Rodoviária Federal.

Por isto que não se mostra razoável normalizar o anormal; aceitar o inaceitável; e responsabilizar terceiros pelos próprios erros. Estas posturas não contribuirão em nada com a sociedade, e, muito menos com a redução do número de sinistros e óbitos no trânsito.

Enquanto isto, se por aqui estamos a procurar culpados pela própria imprudência e negligência, em países como a Suécia, discute-se o conceito da visão zero, que se baseia na premissa que nenhuma morte prematura é aceitável, entendendo que a vida humana é a prioridade nos sistemas viários e de transporte.

O conceito sobre a visão zero está disponível no sítio eletrônico do Governo da Suécia, e vale a pena constatar como a divisão de responsabilidades, ou melhor, como o planejamento e a postura frente a este grave problema mundial influenciou na política pública e se tornou um exemplo para todo o mundo.

“Visão Zero é uma postura ética afirmando que não é aceitável que erros humanos tenham consequências fatais. Pode ser visto como uma mudança de paradigma, onde a responsabilidade final pela segurança viária é transferida do usuário individual da estrada para aqueles que projetam o sistema de transporte, por exemplo, órgãos de gestão rodoviária, fabricantes de veículos, legisladores, operadores de transporte comercial, polícia autoridade e outros. A responsabilidade do utente da estrada é cumprir as leis e regulamentos.”

Neste sentido, é preciso tornar mais efetiva a comunicação dos órgãos de trânsito, é preciso contar com o apoio de toda a sociedade, sendo imprescindível a mobilização e efetiva participação dos meios de comunicação – televisão, rádio, jornais, internet, a mudança de paradigma deve partir de toda a sociedade. Somente apropriando-se de tais valores é que teremos um trânsito mais seguro e uma sociedade mais responsável.

Como exposto acima, no conceito aplicado pelo governo da Suécia, está presente o conceito de responsabilidade compartilhada, que consiste, de maneira prática e objetiva, no fato de que o cidadão (motorista, pedestre, ciclista, portador de necessidades especiais) tem a responsabilidade de respeitar a lei de trânsito, enquanto que os responsáveis pela operação e engenharia devem garantir que o sistema como um todo seja seguro, assim como os engenheiros e projetistas tem o dever de construir e manter as estradas e vias seguras, os fabricantes de veículos cada vez melhor avaliados e seguros.

Ao agir desta forma, o Poder Público certamente contará com o apoio de toda a sociedade, ao comunicar de forma clara e eficaz, certamente está estimulando a cidadania, e, ao fazê-lo, certamente teremos uma sociedade mais consciente, responsável, solidária e participativa, desde que, efetivamente, estejam todos dispostos a medir e ser medidos com a mesma régua.

Aliás, não por acaso, por definição do próprio CTB, logo nos § 1º e 2º do artigo 1º, considera-se trânsito como a “utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga”em condições seguras.

E desta forma, ao angariar a sociedade, teremos mais atores principais e menos críticos de plantão, já que, todos nós somos o trânsito. Neste sentido, a leitura do livro do Ministro Luís Roberto Barroso é uma aula de bom senso, ao dedicar um capítulo sobre o jeitinho brasileiro, e destacar:

“… O compromisso com o bem está presente em todas as grandes tradições filosóficas e religiosas universais, materializado na regra de ouro: trate os outros como gostaria de ser tratado. Immanuel Kant enuncionou a mesma ideia em uma frase memorável: “Aja de tal forma que a máxima que inspira a sua conduta possa se transformar em uma lei universal.” Parece complexo, mas é muito simples. Diante de dúvida razoável, acerca do modo certo de agir, duas perguntas, como regra geral, poderão resolver o problema: “E se fizerem isso comigo” ou “E se todo mundo se comportasse assim?”

E por fim, ao mesmo tempo em que sobram críticas junto à fiscalização de trânsito e que são feitas tantas ilações por uma indústria fictícia, não é demais concluir o presente com a reflexão trazida pelo Ministro Barroso, quanto a nossa sociedade:

“Para darmos o salto civilizatório de que precisamos, é preciso que cada um comece a mudança por si próprio. A ética pública, de que tanto nos queixamos, é em grande medida espelho da ética privada.”

Sem mais, sejamos a mudança.